Os jogos de linguagem: uma percepção totalmente inadequada

Hoje eu não quero falar sobre um músico. Eu quero, na verdade, falar sobre o irmão de um músico. Ele próprio não era músico, mas até tocava clarinete e tinha o maldito ouvido absoluto (que me incomoda muito, demais, já que ter o tal do ouvido absoluto é quase como possuir a habilidade de assoviar e chupar cana ao mesmo tempo. Falando em assoviar -mas não em chupar cana-, o indivíduo sobre o qual eu quero falar hoje decorava e assoviava partituras orquestrais inteiras, o que é um tanto bizarro quando você imagina alguém ao seu lado assoviando por mais de uma hora sem parar a Nona Sinfonia, exatamente do jeito que é).

Seu irmão se chamava Paule (ou Paul, não sei ao certo, mas acho que Paule combina mais com a imagem de um alemão provavelmente carrancudo), que foi um pianista bem famoso. Ele perdeu o braço direito na guerra, mas pra compensar ganhou peças de Ravel e Skriabin escritas especialmente para ele, para serem tocadas com a mão esquerda. Maravilha, assim até vale a pena perder um braço.

Ok, mas não é do Paule que eu quero falar. O nome do indivíduo ao qual me refiro é Ludwig Wittgenstein. Eu não poderia deixar de escrever sobre ele depois de fazer um semestre inteiro de optativa só sobre ele – ele ficou na minha cabeça. Principalmente porque essa optativa foi muito legal. Enfim, eu não vou conseguir escrever propriamente sobre tudo que eu quero escrever, porque o Sr. Wittgenstein é muito cativante, vocês deveriam conhecê-lo. De qualquer jeito, eu quero comentar um pouco sobre as besteiras que eu pensei enquanto lia os textos dele e assistia às aulas, mas que logicamente não pude colocar nos ensaios porque são idéias meio bobas e infantis, mas que por isso mesmo devem ser ditas (ou escritas). Eu sempre fui meio infantil.

Entrando no assunto de verdade. O Wittgenstein pensou sobre uma coisa chamada jogos de linguagem. É mais ou menos assim: tudo que você diz só pode ser entendido dentro do contexto. E esse contexto diz respeito ao jogo que está sendo usado. Por exemplo, imagine alguém pronunciando a sentença “Ronnie Von”. Ela não faz sentido sozinha. Mas vamos supor que o Ronnie Von seja seu camarada, e você esteja chamando ele pra tomar uma cerveja, ou cantar pra sua mãe que tem uma tara irritante pelo indivíduo. Aí temos um possível jogo de linguagem. Ou então vamos supor que seu filho acabou de nascer. Aí você olha pra ele e, ao considerar que você não gostou, nem nunca vai gostar dele, olha para o ser e decide nomeá-lo do pior jeito possível. Aí você diz pro cara do cartório: Ronnie Von. Outro jogo de linguagem. Ou ainda, vamos supor que você esteja brincando de imitar alguém, e comece a cantar e se mexer estrambolicamente com a maior cara de gigolô possível, e eis que alguém exclama: Ronnie Von! Outro jogo de linguagem.

Acho que deu pra entender. Você pode nomear, descrever, evocar, adivinhar, entre um monte de outras coisas. Uma frase, palavra ou qualquer coisa assim só faz sentido dependendo do jogo que você está jogando. Por causa disso, eu comecei a pensar nos inúmeros jogos de linguagem que a gente joga todo dia. É divertido até parar pra pensar.

Um exemplo interessante que o Caetano (o professor da disciplina, não o Veloso) mesmo deu: Mentir é um jogo de linguagem como qualquer outro. Certo. Então imagine uma criança aprendendo a mentir. Ela acredita que aprendeu bem as regras do jogo. Mas pense numa criança mentindo: ela acaba de quebrar o vaso em casa, e as únicas pessoas presentes no local são ela e a mãe dela. Aí a mãe olha furiosa pra criança, e ela, em resposta ao olhar, diz: “Não fui eu”. Não é exatamente uma mentira ainda, mas a criança acha que é, e que é boa. Considerando isso, você provavelmente nunca vai alcançar seus pais no jogo da mentira. Eles vêm jogando isso há pelo menos 25 anos a mais que você.

E eu fiquei pensando: E se eu aprender a mentir de um jeito tão bom que pareça que eu estou jogando outro jogo, como o jogo de relatar algo? (Tá bom que é essa mesmo mesmo a definição do mentir por Wittgenstein, mas veja só como ele meio que explica pra gente como mentir mais efetivamente!  O negócio é entender bem como são as regras em cada situação).

E se a gente estiver mesmo jogando o jogo do sarcasmo, mas não usar a entonação suficiente pra dar a entender que é esse o jogo? Dizer: “Esse seu novo tênis All Star com estampas de oncinha é muito bonito!”, quando na verdade o que você queria era dizer era: “Esse seu novo tênis All Star com estampas de oncinha é muito bonito.”. Aí você estaria mentindo também, internamente. Você estaria rindo sozinho, pra você mesmo e ninguém mais saber. Acho que dá pra sacar bem o esquema do mentir e se divertir internamente com isso lendo Wittgenstein.

A gente pode ainda perceber outra coisa com todo esse esquema dos jogos de linguagem: como é possível tirar certas frases de seu contexto original pra perverter totalmente o que foi dito inicialmente. Assim é muito fácil acabar com o significado de certas coisas, ou acabar até mesmo com certas pessoas. Exemplo. Você está conversando com o Ronaldo (piadas internas). Aí ele diz: “É, eu sou gay”, mas jogando de acordo com as regras do sarcasmo. É lógico que a primeira coisa que você vai fazer é não perder a oportunidade de ignorar esse contexto e começar a rir muito e gritar: “O Ronaldo admitiu que é gay!”. Considerando essa situação e o número de vezes em que ela acontece, é até inevitável achar que Wittgenstein está presente no nosso dia-a-dia,  quase omnipresente.

Pra provar a omnipresença de Wittgenstein, ou pelo menos de seu pensamento,  dá pra lembrar das milhares de frases que são tiradas do contexto todos os dias e que nada tem a ver com o sentido original. A sentença “há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe vossa vã filosofia” com certeza já foi usada por você quando você era adolescente (espero sinceramente que tenha sido só nessa época), e você nem sabia que era do Shakespeare. Aliás, Shakespeare deve ser o rei dos caras que teve suas frases usadas fora de contexto.

Outra coisa que eu aprendi com Wittgenstein foi usar a expressão “com efeito” e a palavra “elucidação” nos trabalhos de faculdade.  Até faz parecer que você sabe do que está falando.

Eu ainda teria muito mais a escrever sobre os jogos de linguagem. Eles são muito divertidos, mas eu não quero escrever mais. Pra quem quer ler as coisas sérias de verdade: “Investigações Filosóficas”, de Ludwig Wittgenstein.

About Mari Cioffi

música, jornalismo, piadas desnecessárias e inglês com sotaque brasileiro proposital.
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